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Os efeitos de uma doença rara na subjetividade da mãe

O diagnóstico de uma doença rara rompe o imaginário narcísico dos pais repercutindo profudamente na relação com a criança, ora como desivestimento, superproteção, ora com resignição. É sobre os efeitos da deficiência na relação com os pais.




As implicações da criança diagnosticada como portadora de necessidade especial no encontro com a mãe

Por: Keith Boy Junior


Os efeitos subjetivos em uma mãe - mesmo para aquelas apenas poedeiras de objetos a abandonar, como define Soler (2005, p. 27) – quanto à descoberta de seu pequeno bebê portar uma necessidade especial, é penetrante. Portanto, se faz justificável cotejar as implicações subjetivas na mãe/mulher quanto à descoberta de uma possível doença irreversível em sua criança. Utilizando como apoio a literatura psicanalítica, as ciências sociais e relatos autobiográficos, é realizado um percurso da relação mãe/mulher, equação fálica na pós-modernidade, ambivalência e o encontro com o bebê real.

Destarte, é importante colocar em evidência a ambivalência da maternidade, sobretudo lançando mão de autores de diferentes campos de saber, como Jerusalinsk e Donath, Freud, Iaconeli, Lacan e outros, como forma de desconstruir a naturalização do instinto e amor materno, e nos lançar em um universo complexo, marcado por contradições. Tornando possível, dessa maneira, recolher, ou por outras palavras, lançar luz as respostas subjetivas, neste caso, do encontro das mães com seus filhos, estes distante da imagem antecipatória fantasiada pela progenitora como lembra (Iaconeli, 2012, p. 108).

Partindo de Freud (1924, p. 204), a psicodinâmica do feminino, marca o início dessa ambivalência já em uma tenra idade. Em (1924) A dissolução do complexo de Édipo, a menina não tolera a renuncia do pênis sem uma compensação, assim ela faz uma equação simbólica: pênis=bebê desembocando seu complexo de Édipo no desejo de ter um filho do pai. A expectativa de ter um filho do pai é enfraquecida, pois o desejo não se realiza, todavia, os desejos de ter um pênis e filho continuam fortemente investidos no inconsciente.

Julieta Jerusalinsk (2014, p. 154), alerta quanto à extensão do estatuto da equação fálica na pós-modernidade. A naturalização da interpretação para o complexo de masculinidade e inveja do pênis provoca um encurtamento às possibilidades de realizações fálicas, não condizentes com a realidade hodierna. É importante marcar as diversificações da equação fálica na contemporaneidade. As soluções para a inveja do pênis ganham novas possibilidades. Não se trata somente de ter um bebê como forma de responder a ausência fálica.

A inserção do feminino no mundo do trabalho a partir da segunda década do século passado é o início de uma nova era. Quando seus maridos ocuparam o front da primeira guerra mundial, a demanda de mão de obra na indústria armamentista aumenta. Ocasião a qual as mulheres passam então a ocupar as linhas de produção de grandes fábricas para não sair mais. É o início de um novo tempo. Seguem-se os anos loucos, de 1920, momento em que o discurso feminista entra em pauta com suas legitimas reinvindicações, tendo seu apogeu no maio 1968. Surgiram novas possibilidades de realização para além do gozo fálico. A formação acadêmica, a realização profissional, o exercício de consumo e estética passam a competir com a pequena majestade, embora este, seguindo Jerusalinsky (2014), continue sendo acompanhado de um intenso sentimento de realização.

Não obstante, é mister trazer a baila os impasses vividos com a realização. Ainda com Jerulalinsky (2014, p. 161), se por um lado o bebê traz a articulação fálica e, por conseguinte a realização, por outra se apresenta as limitações, faz comparecer uma falta, a descompleta. Assim, com o advento do bebê, surge a ameaça de perca do lugar profissional, das aventuras e viagens, bem como do próprio corpo como objeto do desejo do outro.

É sobre esses efeitos que a socióloga Israelense, Orna Donath (2017), pública a sua pesquisa com título: Mães arrependidas, uma outra visão da maternidade. Segundo a autora, muitas sociedades estimulam a natalidade sob a égide de uma promessa, ou seja, a maternidade implicaria em uma vida melhor. Podemos aglutinar a esse proselitismo, a equação fálica, as fantasias de completude e imortalidade. Depositando no filho o objeto máximo de realização, um verdadeiro ideal.

Todavia, a autora em sua pesquisa desnuda uma marcante ambivalência de suas entrevistadas, como no relato de Debra, mãe de dois filhos com idades entre 15 e 20 anos:

Debra: - Apesar de eles serem maravilhosos e encantadores, e do que eles me dão ser incrível. Não nego isso. Mas, se eu pudesse voltar no tempo sem sentir culpa e todos esses outros sentimentos? Não escolheria esse caminho, Orna Donath (2017, p.84).

Andrew Solomon (2013, p. 11), lançando mão da Psicanálise, ilumina as agruras vividas pelos pais de crianças portadoras de necessidades especiais, em sua grande obra intitulada: Longe da árvore. Nela, o autor nos aponta como os efeitos de estranhamento diante de um filho de identidade horizontal, abala a fantasia narcísica de imortalidade advinda da imagem deste. Advogado pelo autor como ato de produção e não de reprodução, quando duas pessoas decidem ter um filho, há a fantasia de imortalidade projetada na figura do filho. Observação corroborada por Freud (1914) no segundo capítulo de Introdução ao Narcisismo:

No ponto mais delicado do sistema narcísico, a imortalidade do eu, tão duramente acossada pela realidade, a segurança é obtida refugiando-se na criança. O amor dos pais, comovente e no fundo tão infantil, não é outra coisa senão o narcisismo dos pais renascido, que na sua transformação em amor objetal revela inconfundivelmente a sua natureza de outrora (FREUD, 1914, p.37).

É importante já, diferenciar aquilo que o autor chama de identidade vertical, ou seja, os atributos e valores transmitidos de pais para filhos, os quais são reconhecidos pelos progenitores. Distinto das identidades horizontais, quando as características inatas ou adquiridas são estranhas aos pais, os quais são atravessados por uma pancada de afetos.

Olivia Byington (2016), em seu livro O que é que ele tem, versa sobre sua vida com João, seu primeiro filho. Logo no início de sua obra faz um retrato dos últimos meses da gestação carregada de expectativas:

Entusiasmada com a gravidez, fui lendo livros, fazendo cursos, acreditando que isso seria fundamental para me tornar uma boa mãe (...). Os três últimos meses da espera foram curtidos a cada minuto. Fiz alguns exames de ultrassom, e o aparelho arcaico mostrava o bebê sem muita definição. Não se via o sexo, e as medidas do crânio e dos membros foram interpretadas como normais. As compras para o enxoval, a barriga ficando enorme, estava tudo na mais perfeita ordem, dentro dos livros, sem improvisos (...). – Tudo está feito, tudo é perfeito. Esses dois seres que lutaram corajosamente transformam-se num só. O livro dizia isso e era para isso que eu estava preparada. Eu queria o meu filho perto de mim, mas queria o meu filho perfeito (...)., (Byington, 2016. P. 16)

Iaconelli (2012), citando Aulagnier (1990), destaca o termo cunhado pela Psicanalista, corpo imaginado, o qual define a imagem que as mães carregam de um bebê, muito antes da concepção de cada criança, sendo a imagem referida à fundação do narcisismo dos pais, rememorando então aos pais dos pais e assim por diante. No recorte acima, percebemos como a gravidez inicia, nos dizeres de Aulagnier (1990), a fundação de uma relação imaginária, ou seja, a criança não é representada como é, um embrião, mas como um corpo completo e unificado. Ela já esta banhada pela linguagem, com nome, time e profissão.

A gestação, portanto evoca a equação fálica, o bebê imaginado como suposto reparador do complexo de castração, passa a ser alvo dos investimentos maternos, nos dizeres de Aulagnier (1990, p. 18) citada por Iaconelli (2012, p. 87), um sobreinvestimento narcísico, pois a mulher ao amar seu bebê, ama a si mesma. Marco Antônio Coutinho Jorge (2016, p. 145), na linha de Aulagnier e Iaconelli, mas, apoiando-se em Lacan, verifica que a mãe, no primeiro tempo do Édipo, deseja na criança sua imagem fálica.

A imagem do bebê sonhado, todavia, pode sofrer um abalo com o diagnóstico de uma síndrome, uma doença, de algo que faz uma ferida narcísica, como testemunha Olivia Byington (2016):

Eu pedi para ver a criança e reagi mal. Muito mal. Não queria aquela coisa, queria o meu filho perfeito, o do livro, o da gravidez, o que estava comigo quando eu caminhava cedinho pela praia, quando eu tomava sucos, quando as aulas do “Pardo não dói”. Queria o bebê que ia dormir no quarto cheio de frus-frus, rendas e babados. Queria ser como todo mundo, como Elisa, que já tinha o seu Joaquim, então com um mês. Não queria aquilo, aquela coisa malformada, sem dedos nas mãos, com uma cabeça gigante e olhos soltados (Byington 2016, p. 18).

Tânia Ferreira e Angela Vorcaro (2017, p. 58), em: O tratamento Psicanalítico de crianças autistas, advertem quanto à intensidade da angústia enfrentada pelos pais no cotidiano e no diagnóstico. Podendo a angústia ser acentuada pela fala de especialistas. Nessa perspectiva Maud Mannoni (1985, p. 4) vai descrever o efeito de choque no nascimento de um filho portador de anomalia, ou diagnosticado posteriormente com uma necessidade especial. Ela pergunta em sua obra: Se este filho, carregado com todos os sonhos perdidos da mãe, nasce doente, que irá acontecer? Ela aponta para além do retorno dos traumatismos e insatisfações anteriores, possível impedimento no plano simbólico da resolução do seu Édipo. Nessa perspectiva, aparece em algumas mães um efeito de negação e, por conseguinte, distanciamento materno pela não correspondência do filho fantasiado com o real.

Segundo Gurian (2013, p. 112), Maud Mannoni (idem, p. 4) indicam a impossibilidade de prever os efeitos do encontro com o filho real, já que se trata de uma ferida narcísica, o encontro pode gerar questionamentos, dúvidas, decepções, medo e inseguranças. Nesse sentido, o estranhamento com o filho real pode mascarar a própria angústia do agente materno podendo acentuar obstáculos para além da enfermidade. O foco na suposta “deficiência” pode ressaltar esta, ao passo que o bebê e sua singularidade fiquem submissos ao estigma.

Jorge Forbes (2011, p. 31) vai nos ajudar a pensar como os sentimentos Prêt-à-porter da compaixão e resignação limita a possibilidade de saída do encontro traumático com o diagnóstico. Pois a resignação pode reverberar certa submissão ao diagnóstico e, a (com-paixão) com-pathos, ou seja, com-sofrimento, liga a mãe ao bebê pela via da piedade, do sofrimento. Gurian (2013, p. 121) vai indicar como a superproteção pode ter sido um vetor da ambivalência, do contraditório, o qual pode esconder então um o ódio pelo filho. Parece se tratar de um deslocamento comum na formação reativa, em que o ego procura afastar o desejo, fazendo com o que sujeito tome uma posição oposta a este desejo.

Ainda com os efeitos dos sentimentos Prêt-à-Porter, podemos elencar a debilidade da criança estigmatizada como efeito do assujeitamento. Pois de acordo com Pires Couto (2012, p. 78), citando Lacadée (2003), a criança é recebida em posição de objeto a do fantasma materno, tornado a criança enferma totalmente exposta a possibilidade de fechamento da boca de Jacaré/crocodilo, já que Mannoni retrata a completa ausência paterna nesses casos. Existe assim uma pura dualidade entre mãe e criança, há uma simbiose, uma fusão do corpo da mãe com da criança. Contudo, Nezan (2009) apud Lacan (1964) esclarece a simbiose no nível da cadeia significante, no desaparecimento do intervalo de S1-S2.

Portanto, observamos com o exposto que os efeitos do encontro com o filho portador de anomalia, ou ainda com um diagnóstico estigmatizante pode produzir diversos efeitos em quem ocupa a função materna. Na pós-modernidade como supracitado, quando a mulher vai experimentar outros modos de simbolizar a equação fálica, o efeito de negação parece tornar mais potente o desinvestimento do bebê, sob o risco da não particularização do cuidado, ficando, a criança, presa a um desejo anônimo, por vezes sob um cuidado terceirizado. Por outro lado, apontamos a possibilidade de aprisionamento da criança como objeto a do fantasma materno, nesse sentido ela vem tamponar a falta do outro não como um ideal, mas como gozo.


Referências Bibliográficas

BYINGTON, Olivia. O que é que ele tem. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2016.

COUTO, Margareth Pires. O fracasso escolar e a Família: o que a clínica ensina? Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2012.

DONATH, Orna. Mães arrependidas: uma outra visão da maternidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

FERREIRA, Tânia. Tratamento Psicanalítico de crianças autistas: diálogo com múltiplas experiências. Tânia Ferreira, Angela Vorcaro. – 1. Ed. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

FREUD, Sigmund. Introdução ao Narcisismo: Ensaios de Metapsicologia e outros textos (1914-1916). Tradução e Notas Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

FREUD, Sigmund. O eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925). Tradução e Notas Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferencias introdutórias à Psicanálise e outros textos (1930-1936). Tradução e Notas Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

GURIAN, Maria Fernanda Pereira. O encontro com o corpo estranho: algumas reflexos do encontro de uma mulher e seu filho com síndrome de Down. São Paulo: Puc-SP, 2013. Orientador: Professor Doutor: Renato Mezan.

IACONELI, Vera. Mal-estar na maternidade: do infanticídio à função materna. Orientador Nelson da Silva Junior. – São Paulo, 2012.

JERUSALINKY, Julieta. A criação da criança: brincar, gozo e fala entre a mãe e o bebê. Salvador, BA: Ágalma, 2014.

FORBES, Jorge de Figueiredo. Desautorizando o sofrimento socialmente padronizado, em pacientes afetados por doenças neuromusculares. São Paulo, 2011.

MANNONI, Maud. A criança Retardada e a mãe. Rio de Janeiro: Editora Martins Fontes Editora LTDA, 1985.

SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres. Tradução: Vera Ribeiro; Consultoria, Marco Antônio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

SOLOMON, Andrew. Longe da árvore: pais, filhos e a busca da Identidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

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